quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Onde mora o maior indice de violêcia contra a mulher ?

O meu tema – ou a minha lacuna – são as conexões perversas entre violência contra as mulheres, violência estrutural e violência urbana. Para quem mora em Pernambuco, o estado mais violento do país, detentor das mais altas taxas de homicídio do mundo, talvez sejam óbvias estas conexões, mas, ao olhar para as elaborações teóricas e políticas no campo da violência, nem sempre estes laços se explicitam. Nossas dificuldades para tratar destes temas se iniciam com a imprecisão conceitual que ronda cada um deles. São muitas as definições de violência, pautadas pelas posições dos sujeitos envolvidos nas situações concretas e nas disputas teóricas e políticas. Por esta razão, inicio a minha fala fazendo uma breve demarcação dos termos sobre os quais iremos debater, entendendo que se tratam de definições provisórias e, por isso, sujeitas à incorreções e à espera das modificações que surgirão a partir do debate.
Vou considerar que, por razões óbvias, não preciso definir aqui a violência contra as mulheres, mas gostaria apenas de lembrar este é um tipo de violência que tem agressores e vítimas bem definidos, sendo aqueles homens e estas mulheres, e situações também relativamente claras no que se refere às motivações e causas das agressões e às formas e contextos de ocorrência. A violência estrutural vem sendo definida como aquela violência que se origina nas estruturas sociais e econômicas desiguais e injustas, reproduzindo-se através delas. Falamos aqui da violência da pobreza, da miséria e da desigualdade onde as vítimas são coletivos humanos e os agressores são indefinidos, despersonalizados e desmaterializados. Mas falamos também das diferentes formas de discriminação e preconceito que se enraízam nas relações sociais e, por isso, já agora temos uma primeira questão para o debate. Se consideramos que as relações de classe, gênero e raça são estruturantes da nossa sociedade, teremos que considerar que a violência contra as mulheres, que é uma violência de gênero, é violência estrutural  tanto quanto a violência racial e de classe. As conseqüências teóricas e políticas desta afirmação não são nada desprezíveis e considero que devemos explorá-las no debate. Finalmente, a violência urbana, aquela que nos assusta e acua a todos e todas e sobre a qual diz-se sempre que cresce e nunca diminui, como se fosse uma espécie de fenômeno fora do alcance da ação da sociedade e dos governos. Este tipo de violência pode ser cometida contra as pessoas e contra o patrimônio, os agressores são bem definidos – indivíduos ou grupos criminosos – e as vítimas somos todos e todas nós, de qualquer sexo, raça ou classe. Porém, quando se trata das formas mais graves de violência, como é o caso dos homicídios, as vítimas e os contextos de ocorrência dos crimes adquirem um perfil menos difuso e mais homogêneo: morrem desta maneira homens e mulheres pobres, negros e jovens residentes nas periferias de grandes cidades brasileiras em áreas onde são precárias as condições de vida e o acesso a direitos.
Feitas as definições, ainda que provisórias, vamos tentar agora montar as conexões. Para isso, gostaria de pontuar alguns aspectos que me trouxeram até aqui, lembrando que estou trabalhando com o marco histórico de trinta anos de feminismo no Brasil, ao longo dos quais foi erigida uma sólida elaboração teórica e um importante conjunto de políticas públicas voltadas para o combate à violência contra as mulheres, ambas baseadas em análises sofisticadas e inovadoras da realidade das mulheres. E é desta realidade que emerge o primeiro aspecto: como sabemos, o Brasil passou por intensas transformações nestas últimas três décadas, muitas delas decorrentes da ação dos movimentos feministas, o que colocou as mulheres em novas situações e contextos, nem sempre considerados nas atuais análises sobre a violência. Apenas como exemplo, cito duas situações sobre as quais ainda temos muito a aprender e mais ainda a elaborar no campo das políticas e propostas de ação. A primeira é a relação entre violência e trabalho das mulheres: sabemos que a violência é um dos principais motivos do absenteísmo feminino que, por sua vez, contribui para a rotatividade no emprego, deixando-as numa situação fragilizada e precária no mercado de trabalho o que, num ciclo vicioso, contribui para que elas se mantenham nas situações de violência. A segunda é da área da saúde: estudos indicam que mais da metade das usuárias do SUS sofrem ou sofreram violência de seus parceiros – é bastante provável, portanto, que suas queixas estejam relacionadas à violência mas nem as políticas nem os serviços de saúde consideram essa possibilidade.
 O segundo aspecto diz respeito aos impactos e aos resultados das políticas e da ação feminista que, evidentemente, não se fazem no vazio, mas, sim, em uma sociedade estruturada sobre bases desiguais e injustas. A tese feminista de que a violência contra as mulheres pode atingir indiferentemente mulheres de todos os grupos sociais parece perder força a partir da instituição das políticas de combate à violência e da disseminação de um ideário político igualitário. A pergunta aqui é: sim, potencialmente qualquer uma de nós pode sofrer a violência masculina, mas quais de nós terão a possibilidade de sair desta situação antes que ela se agrave ou termine tragicamente em um homicídio?  De acordo com a nossa experiência e com estudos e pesquisas diversos, escapam da violência as mulheres com maior grau de escolaridade e residentes em áreas urbanizadas, com presença de serviços e equipamentos públicos – o que parece facilitar o acesso à ajuda e aos direitos. As outras parecem ter mais dificuldades para encontrar as vias de saída da violência, o que leva muitas delas à morte trágica. Nossa questão aqui está no campo da compreensão do problema – entendendo que as situações de classe e raça fazem, sim, diferença quando falamos de violência – e na formulação das políticas que devem, portanto, ser pensadas de modo diferenciado para grupos diferenciados de mulheres e áreas específicas do país.
 Isso nos leva ao terceiro aspecto, que é o da impossibilidade de realização da democracia na vida social e nas relações pessoais – pressuposto de uma vida sem violência – em áreas onde predomina o uso da força e das armas. Quantas mulheres brasileiras vivem nestas áreas? Nos garimpos, nas estradas comandadas por redes de exploração sexual, nas áreas de periferia dominadas por grupos criminosos? O que sabemos sobre o cotidiano e as relações de gênero nestes contextos? Espancadas na madrugada, como pedir ajuda e gritar por socorro se a partir das sete da noite impera a lei do silêncio e as portas fechadas? Como ser socorrida se ambulâncias, e às vezes nem mesmo a polícia, não entram em certas áreas? O homem armado, ainda que pobre, continua a ser a trágica personificação do patriarcado que tanto combatemos e, a despeito de nossos imensos esforços, o que vemos é a proliferação sem controle dessa indesejável figura nas grandes cidades brasileiras.
 Finalmente, reforço aqui uma questão colocada pela antropóloga carioca Alba Zaluar. Não bastasse todos os seus terríveis efeitos, esta conjunção perversa das muitas violências ainda produz novas sobrecargas de trabalho para as mulheres. São elas que socorrem e cuidam dos feridos e sustentam os incapacitados pelas balas e, na ausência daqueles que são assassinados, assumem para si mais uma parte da responsabilidade pelo sustento da família.
 A partir dessas breves observações iniciais, gostaria de apresentar alguns temas para o nosso debate.
   No campo da violência, nossas análises ainda pecam pelo universalismo ao desconsiderar as situações de classe e raça das mulheres. Nosso desafio é superar a fragmentação teórica e política que circunscreve a violência contra as mulheres como um campo isolado de conhecimento e ação política. Nessa direção, teríamos que trabalhar com a idéia de grupos mais e menos expostos à violência que demandam políticas diferenciadas, sem abrir mão das ações voltadas para a sociedade em geral e que objetivam transformações nos valores e na cultura política.
   As áreas dominadas por grupos criminosos armados nos desafiam a trabalhar com a idéia de potencialização recíproca – ou sinergia perversa -- dos efeitos negativos das desigualdades de gênero, classe e raça sobre as pessoas e grupos, levando-nos também a pensar sobre a necessidade urgente de implementação de políticas e ações locais que possibilitem a resdistribuição de recursos econômicos e o acesso a direitos e serviços públicos de qualidade.
  Estamos também desafiadas a compreender e intervir no campo das políticas de segurança pública e cidadã. O que temos a dizer sobre elas? Ainda neste campo, o que temos a dizer sobre o combate ás redes e grupos criminosos? De que maneira as políticas de segurança, majoritariamente voltadas para a proteção do patrimônio, tratam das questões de gênero, classe e raça? O que seria uma política feminista de segurança cidadã e democrática, voltada para as causas das diferentes violências e que tivesse como base a mais profunda e ampla intersetorialidade?

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